Por Jonas Chaves
1. INTRODUÇÃO
1. INTRODUÇÃO
A pretensão deste trabalho é a de ser um tratado teológico e exegético dos dois primeiros versos das Escrituras Sagradas, que descrevem o princípio da criação de todo o universo através dos comandos poderosos de Deus.
Esta pesquisa iniciará com um estudo contextual do livro de Gênesis, onde se abordam algumas informações sobre autoria, local, data, contexto histórico, político, social, psicológico, etc. Estes assuntos serão colocados do ponto de vista ortodoxo.
Assumiremos nesta nossa análise, como fundamento para uma correta compreensão e interpretação do texto sagrado, o pressuposto de que as Escrituras são inerrantes, infalíveis e divinamente inspiradas. Isto deve ser enfatizado em vista da tendência de alguns em desacreditar a historicidade do texto sagrado, reduzindo-o a um livro mitológico, lendário e cheio de superstições. As conclusões a que chegam estes estudiosos não serão ignoradas neste trabalho, mas serão consideradas e analisadas criticamente.
Quando investigamos as palavras dos versos que iremos estudar, encontramos alguns problemas. Surgem perguntas como: quando foi o princípio de todas as coisas? Deus criou tudo do nada ou usou alguma matéria primitiva? Os céus e a terra criados são os céus e a terra que conhecemos hoje? Existe um intervalo entre o verso 1 e o 2, durante o qual a terra foi destruída? Trataremos cada uma destas questões em nossa análise palavra por palavra dos dois versos.
Esta análise será feita nas principais palavras destes dois versículos. Estas palavras trazem algumas nuanças que requerem atenção para quem deseja entender o ensino dessa passagem bíblica. Tais análises fornecerão subsídios importantes, do ponto de vista ortodoxo, para a interpretação correta do relato da criação.
2. EXEGESE DE GÊNESIS 1.1-2
2.1 ESTUDO CONTEXTUAL (PERSPECTIVA ORTODOXA)
2.1.1 AUTORIA – As evidências apontam para Moisés como o autor do livro de Gênesis. Esta posição está em harmonia com o que vem sendo defendido pelo cristianismo ortodoxo ao longo da história.
Em termos de evidências internas, apesar de não ser afirmado de forma direta que Moisés seja o autor do Gênesis, vários textos bíblicos evidenciam que ele escreveu todo o Pentateuco. Por exemplo, Êxodo 24.4 registra que “Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR”. Além disso, temos referências à autoria mosaica em outros livros do Antigo Testamento (Ed 6.18; Ne 8.1-8) e no Novo Testamento (Mt 19.8; Jo 5.46,47).
2.1.2 LOCAL – Segundo Eugene H. Merrill, Moisés inicia seu trabalho como escritor “nas planícies de Moabe, quarenta anos depois do Êxodo, na época em que Israel estava prestes a conquistar Canaã e estabelecer-se como entidade nacional em cumprimento das promessas feitas aos ancestrais patriarcais”.
2.1.3 DATA – Moisés escreveu o Gênesis imediatamente após a travessia do Mar Vermelho, quando, depois de haver Deus derrotado faraó e o seu exército, ele convida todo o povo a sentar-se e a ouvir sobre a origem de todas as coisas. A evidência aponta para a metade do século XIX antes de Cristo (provavelmente em 1440 a.C.).
2.1.4 DESTINATÁRIO – O destinatário é o próprio povo liberto da escravidão que seguiu em direção a Canaã.
2.1.5 SITUAÇÃO POLÍTICA – O povo havia saído do cativeiro egípcio e agora caminhava em direção à liberdade. Isto significava deixar o governo despótico do faraó do Egito para o início da organização teocrática de Israel.
2.1.6 SITUAÇÃO SOCIAL – Visto que o contexto histórico da escrita de Gênesis é o da libertação do povo de Israel da escravidão do Egito, podemos conceber a situação social como a de um povo que, depois de ter sofrido durantes anos no deserto como escravo, agora vive a esperança da conquista da terra que Yahweh havia prometido aos patriarcas.
2.1.7 SITUAÇÃO PSICOLÓGICA – Os israelitas viviam a expectativa da posse de Canaã, a terra prometida. Tal expectativa fora alimentada e fortalecida com os poderosos feitos de Yahweh entre eles, como os milagres realizados entre eles, sendo o principal a abertura do Mar Vermelho e a destruição de Faraó e seu exército.
2.1.8 MOTIVAÇÃO DO ESCRITOR – O autor tinha a intenção de explicar ao povo de Israel quem era o Deus a quem eles estavam servindo. Eles já haviam testemunhado o poder de Yahweh, precisavam agora de alguém que lhes explicasse o significado de tudo aquilo.
2.1.9 MENSAGEM – Nas palavras do erudito reformado E. J. Young, “O propósito do primeiro livro do Pentateuco é fornecer um breve sumário da história da revelação divina, desde o principio até que os israelitas foram levados para o Egito e estavam prontos para se formarem em nação teocrática” . Portanto, a mensagem do Gênesis é a do Deus único e verdadeiro, que de maneira miraculoso criou os céus e a terra.
3. DIVISÃO DE CENAS
CENA 1: Deus inicia a criação do cosmo (v.1)
CENA 2: Deus organiza o cosmo criado (v.2)
4. DIVISÃO DO TEXTO HEBRAICO
Versículo 1:
1ª divisão
Bereshit bara elohim
2ª divisão
Et ha’shamayim ve’et ha’arets
Versículo 2:
1ª divisão
Ve’ha’arets ha’yetah tohu va’vohu ve’hochech al’peney tehom
2ª divisão
Ve’ruah elohim merahefet al’peney ha’mayim
5. ESTRUTURA LITERÁRIA
Alguns tendem a enxergar um paralelismo no texto que comprova que os dias da criação não podem ser interpretados como literais.
Gênesis apresenta, na verdade, uma estrutura literária que permite entendermos que os dias criativos se tratam de dias literais. Com isto negamos as hipóteses levantadas, segundo as quais estes dias não podem ser considerados como dias comuns, mas como eras indefinidas. Utilizando-se do argumento de Berkhof, “a luz não é uma substância que emana do sol, mas consiste de ondas de éter produzidas por elétrons energéticos. Note-se também que Gênesis não fala do sol como luz (or), mas como luzeiro, ou portador de luz (ma’or), exatamente o que a ciência descobriu que é” .
6. EXTRAÇÃO DA TEOLOGIA BÍBLICA
6.1 VERSO 1:
Bereshit – Analisando morfologicamente a primeira expressão do texto hebraico, encontramos um problema ao compará-lo com a maioria das traduções em português, as quais vertem o texto da seguinte forma: “No princípio”. O problema com essa tradução é que “no” é o resultado da contração “em + o” (preposição + artigo definido), porém o artigo não está presente no texto. Em hebraico, quando o substantivo não é precedido de artigo, aquele deve ser entendido como indefinido. Teologicamente, isto significa que não podemos conhecer ou determinar esse princípio quando Deus começou a criar.
O Dr. Mauro Meister, em seu artigo intitulado “A Questão dos Pressupostos na Interpretação de Gênesis 1.1 e 2”, da revista Fides Reformata, após analisar algumas passagens bíblicas onde o termo reshit (que é um substantivo feminino singular) é usado, conclui que “o termo princípio (reshit) não significa necessariamente o princípio em um instante, mas pode significar o começo e a sua continuidade” .
O termo reshit é derivado da raiz rosh (cabeça, chefe). De acordo com o Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, o significado básico de reshit “é o de ‘primeiro’ ou ‘início’ de uma série”. Este mesmo dicionário diz que “O uso mais importante de reshit no AT ocorre em Gênesis 1.1, em que é empregado em conjunto com a preposição proclítica b (q.v.)” e conclui que “O emprego dessa raiz não deixa dúvidas de que Gênesis 1.1 começa como o ato primeiro e inicial da criação do cosmos” .
O Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento traz como significados de reshit “princípio”, “ponto inicial”, “melhor”, “primícias”. Esta palavra, no contexto de Gênesis 1.1, deve ser entendida como o princípio da criação de todas as coisas (incluindo o “princípio” dos anjos, dos céus e da terra, do homem e da vida animal e vegetal). Ou seja, temos aqui a narração da criação de absolutamente TODAS AS COISAS visíveis e invisíveis.
Bara – Temos em seguida o verbo “criou”. Ele é um verbo qal completo masculino singular. Esse verbo só é usado quando o sujeito de sua ação é Deus. No contexto de Gênesis 1 ele tem o sentido de “criar do nada”. Mesmo Von Rad, com sua orientação liberal, assevera que “Mesmo se tratando de uma nova criação de Iavé, bara é o termo empregado (Sl 102.19; 51.12). Como tal ação nunca é posta em relação com alguma matéria pré-existente, associa-se a ela a concepção de criação ‘do nada’” . O contexto bíblico mais amplo reforça esta ideia (Jo 1.3; Hb 1.3). Ele nos mostra que a criação estava completa e acabada quando o autor (Moisés) escreveu o texto, uma vez que no original ele é um qal completo. Ele, todavia, não traz as minúcias de como o universo foi criado. Vemos apenas a asseveração de que a criação se deu pelo fiat divino, sua ordem imediata.
Ao contrário do que ensinam os teólogos críticos, que tendem a enxergar no relato bíblico da criação uma dependência literária, como se o autor houvesse lançado mão das cosmogonias pagãs para compor o seu texto, a criação descrita em Gênesis não pode ser vista desta forma. Segundo se afirma, há semelhanças significativas entre o texto de Gênesis e os escritos antigos sobre a criação do universo, particularmente o épico babilônico Enuma Elish (que significa “Quando no Alto”, que são suas palavras iniciais).
Há, de fato, algumas semelhanças entre esses documentos, como a menção da existência de um abismo, a criação do homem no sexto dia e outras coisas. No entanto, tais semelhanças são insignificantes quando se considera as diferenças. Essas sim são significativas. Por exemplo, enquanto o Enuma Elish descreve a batalha entre a deusa Tiamat e Marduk e este criando o mundo a partir dos restos mortais daquela, o Gênesis apresenta Elohim criando todas as coisas do nada, sem a utilização de matéria pré-existente. Além disso, os relatos pagãos apresentam guerra e sexo entre os deuses, coisas que não estão presentes no Gênesis.
Elohim – No fim da primeira divisão do versículo 1 temos o termo Elohim. Sua classificação morfossintática é a seguinte: substantivo masculino plural. Literalmente significa “deuses”. Alguns teólogos entendem que este plural indica a triunidade ou a pluralidade de pessoas na divindade. O DITEAT aponta para esta tendência quando afirma que “o AT testemunha uma riqueza e complexidade no reino divino (Gn 1.26; Is 6.8) de tal forma que desenvolvimentos trinitarianos posteriores parecem bastante naturais”.
Isto é um equívoco, pois, embora a doutrina da triunidade seja bíblica, esta palavra aponta para o plural de majestade de Yahweh, que reúne em si todos os poderes atribuídos aos falsos deuses das nações pagãs vizinhas do antigo Israel. Seria algo difícil de inculcar na mente dos israelitas, que tanto foram ensinados acerca do monoteísmo e advertidos quanto ao pecado da idolatria, a ideia de uma pluralidade em Deus. A unidade divina é, neste verso, atestada por que após esta palavra, o escritor descreve a atividade criadora de Deus com um verbo no singular (“criou”).
Hashamayim vehaarets – Na sequência do nosso texto aparecem estas duas expressões, que literalmente significam “céus” e “terra”. Temos aqui o que se chama de merisma. É uma forma de se referir à criação de TUDO o que há, uma vez que não havia a palavra “universo” na língua hebraica. Tanto o DIT quanto o DITEAT trazem esta informação. O Dr. Mauro Meister diz que “Céus e terra representam aqui tudo o que o autor e seus leitores concebiam como a criação de Elohim, tudo o que eles podiam ver e perceber nos céus e na terra, ou seja, o lugar onde pisam e tudo o que vêem no céu, incluindo sol, lua, estrelas e nuvens, em contraste com a religião e cosmogonia egípcia (ou outras cosmogonias do antigo Oriente Próximo) que via esses mesmos elementos como deuses” .
Hashamayim – É um artigo + substantivo masculino plural. Seus significados são “céus”, “ar”, “firmamento”. De acordo com o DIT, há duas categorias para estes céus: céu físico e céu como morada de Deus. Van Gronigen acrescenta mais um: o céu como a habitação eterna dos salvos. O relato bíblico a respeito dos céus diferencia-se do paganismo pelo fato de que os céus são apresentados não como uma divindade, mas como parte da criação de Deus.
Haarets – Aqui temos a menção da terra. Trata-se, no original, de um artigo + substantivo feminino singular. Ela pode significar “terra”, “cidade (estado)”, “mundo (inferior)”. A erets que encontramos aqui se refere à terra no sentido cosmológico. Moisés registra a criação de todo o cosmo falando habitat onde os vice-gerentes de Yahweh haveriam de residir (Sl 115.16) e sobre o qual deveriam exercer domínio (Gn 1.29).
Conforme já foi mencionado, a narrativa bíblica é totalmente distinta da cosmogonia babilônica apresentada no Enuma Elish, pois ela é resultado do fiat de Deus, e não dos restos mortais da deusa Tiamat. As Escrituras destacam-se como o único relato antigo cuja cosmogonia não apresenta um politeísmo arraigado em sua narrativa. Ela mostra um Deus único e Soberano sobre toda a criação, que cria todas as coisas pela sua poderosa palavra e sem uso de matéria primitiva. Como esta palavra aparece no verso 2 com um waw conjuntivo, iremos passar para a análise da palavra seguinte.
6.2 VERSO 2:
Tohu – O verso 2 informa a condição da terra por meio de um jogo de palavras, sendo a primeira tohu. É traduzida em nossas Bíblias como “sem forma”. O DITAT traz os seguintes significados para esta palavra: “confusão”, “espaço vazio”, “sem forma”, “nada”, “nulidade”, “vacuidade”, “vaidade”, “deserto”, “caos”.
Alguns teólogos vêem aqui fundamento para a chamada “Teoria do Intervalo” ou “Teoria da Lacuna”. Segundo esta teoria, há um intervalo entre o verso 1 e o 2, entre os quais haveria transcorrido milhares ou até milhões de anos. Nesse período teria ocorrido a queda de Satanás e sua consequente expulsão do céu. A queda de Satanás explicaria este “caos”. A pergunta que se faz é: se Deus criou todas as coisas boas, como ele mesmo testemunha (Gn 1.31), como o autor do texto fala de um caos existente na terra no 2º verso?
Não é necessário chegar à conclusão de que este termo aponta para um caos ocasionado pela queda de Satanás. Aqui no contexto de Gênesis ele apenas descreve a terra como sendo um lugar inapropriado para habitação humana. O verso 1 descreve Yahweh Deus criando todas as coisas. O verso 2 o descreve organizando o cosmo que ele criou para a habitação dos seus vice-gerentes pactuais.
Vavohu – Temos aqui uma conjunção e um substantivo comum, porém apenas o segundo nos interessa para nossa análise. O segundo o DITEAT, o termo significa “vazio”, “ermo”, “terra desolada”, “o nada”. Ele deve ser entendido praticamente como sinônimo de tohu dentro deste contexto. Ele reforça a ideia do termo anterior de que o cosmo era, inicialmente, um lugar inabitável, sem condições de a vida das criaturas se desenvolverem.
Tehom – O texto nos informa que trevas cobriam a face do tehom. O DIT apresenta os seguintes significados para esta palavra: “abismo”, “profundezas”, “lugares profundos”. Já no DITEAT temos as seguintes possibilidades de tradução: “oceano primitivo”, “profundezas do mar”, “água subterrânea”, “profundezas”. Encontramos também algo semelhante na gramática do hebraico bíblico de Kelley: “abismo”, “grande profundidade” . Por fim, o dicionário de hebraico-português e aramaico-português traz estes sentidos: “abismo”, “profundeza”, “oceano primevo”, “vagalhão”, “manancial profundo” .
Alguns estudiosos de orientação crítica, no afã de interpretarem o texto de Gênesis como mitológico, viram uma relação entre o nome hebraico tehom e o da deusa do mito babilônico Tiamat. Esforço ainda maior foi feito para se enxergar uma hipotética luta entre o ruah e tehom, fazendo o texto bíblico se assemelhar aos mitos pagãos por mostrarem a existência de guerra entre deuses. Essa “camisa-de-força” imposta ao texto é reforçada com a palavra merahefet, que é interpretada como denotando “batalha”.
Esta exegese é claramente forçada. A palavra merahefet não transmite a ideia de batalha (analisaremos esta palavra mais adiante). E não há no texto qualquer indicativo de uma luta ocorrida entre o Espírito e o abismo. Além do mais, apesar do fato de que tehom e tiamat sejam oriundas da mesma raiz, a palavra hebraica conservou o seu significado primário de “águas profundas”, ao passo que o termo acadiano foi personificado e divinizado pelos pagãos.
O DIT testemunha que hoje “se reconhece que tehom não poderia ter derivado de tiamat porque a consoante intermediária, uma gutural, perdeu-se em acadiano e não seria fabricada numa palavra tomada de empréstimo” . O DITEAT nos informa que “Em termos morfológicos, o hebraico tehom corresponde ao ugarítico thm e não ao nome da divindade acadiana Tiamat (que possui terminação feminina)” .
Veruah – O texto hebraico menciona em seguida o ruah. Temos aqui uma conjunção (o chamado waw consecutivo) + um substantivo singular no estado construto. Essa palavra pode significar “vento”, “transitoriedade”, “vontade”, “disposição”, “temperamento”, “espírito”. Esta palavra é, neste versículo, geralmente entendida como uma referência ao Espírito Santo de Deus. Isto pode ser verificado nas nossas principais traduções em português, onde “Espírito” aparece com a primeira letra em maiúsculo. Obviamente isto reflete a convicção teológica do tradutor, já que no hebraico não há letras maiúsculas ou minúsculas.
Alguns estudiosos, discordando dessa visão tradicional, entendem que a tradução “Espírito” está equivocada, pois não há aqui menção ao Espírito Santo. Estes mais comumente crêem que a palavra deve ser traduzida por “vento”. A Bíblia de Jerusalém, por exemplo, diz neste verso que “um vento de Deus pairava sobre as águas”. Outra tradução católica, a Bíblia Edição Pastoral, diz que “um vento impetuoso de Deus soprava sobre as águas”. Wolff entende desta forma quando comenta que “a palavra [ruah] não significa o ar como tal, mas o ar em movimento. Assim, em Gênesis 1.2, a ruah sopra sobre as águas, à maneira da águia que se libra nos ares (Dt 32.11)” .
Para entendermos corretamente do que se trata o ruah do texto, precisamos deixar que o contexto lance luz sobre ele. Uma vez que está numa relação de construto, ruah pertence à elohim. É um ruah de Deus. “Espírito de Deus” ocorre 11 vezes em todo o Antigo Testamento. Este ruah é apresentado como criador em Jó 33.4 e em Salmos 104.30. Encontramos nestes textos o caráter pessoal deste ruah que estava presente ativamente na criação.
O DITEAT concorda com esta visão quando, comentando sobre a palavra ruah, diz que “O Espírito de Deus é o agente da criação (Sl 104.29-30; Jó 33.4). Seu Espírito estava ativo não apenas na criação original (Gn 1.2) e na recriação após o Dilúvio (8.1), mas também na criação do povo de Israel (na forma de vento, Êx 14.19-20; 15.10) e na criação da igreja (At 2.1-4)”. Gerard Van Gronigen, em seu livro Criação e Consumação – o Reino, a Aliança e o Mediador, registra que “o Deus Criador singular, que é um Deus que fala e que envia sua palavra de poder e execução é também considerado como o Espírito Criador”. E em poucas palavras, H.L. Hellison afirma que “Por seu Espírito, ele (Deus) estava separando o material (v.2)” .
Através da atividade do ruah podemos também identificar a sua natureza. Esta palavra será discutida mais adiante, quando iremos observar que ela é importante na identificação do ruah como se tratando do Espírito de Deus, aquele que participou ativamente na criação do universo.
Merahefet – Esta palavra descreve a atividade do ruah de elohim. Ela é um verbo particípio que está no tronco piel. Para Strong ela significa: “se mover”, “ser abalado”, “estar agitado”, “alvoroçado”. Enih Gil’ead afirma que esta palavra “Pode também expressar o sentimento de ternura, amor e carinho por uma criança; conforme definição dada por Genesius... o que seria: como uma águia, o Espírito de Deus teria ‘chocado’ sobre a informe massa da terra, acalentando-a e vivificando-a”. O intensivo ativo piel favorece esta interpretação. O Espírito agiu de forma efetiva sobre a criação, dando as condições favoráveis para que a terra, palco da habitação dos vice-gerentes do reino cósmico de Yahweh, fosse por aqueles habitada.
Al’peney – Esta expressão significa literalmente “sobre faces de”. Trata-se de uma preposição + um substantivo em estado construto. Este estado construto significa que há aqui uma relação genitiva (de origem) entre este substantivo e o próximo. Em outras palavras, as “faces” sobre as quais o Espírito pairava pertenciam às águas, que são mencionadas posteriormente.
Ha’mayim – A última palavra do versículo 2 significa literalmente “águas”. Este substantivo comum designa, aqui neste texto, as águas dos oceanos.
A teologia liberal também tenta mitologizar o relato bíblico através desta palavra, vendo um possível paralelo desta com a divindade pagã Hu (deus da água corrente, sendo tehom o deus Num, da água parada). Como forma de refutação desta ideia, cabe aqui o mesmo argumento apresentado com relação à palavra tehom, ou seja, que não há na Escritura qualquer personificação ou divinização destes elementos da criação, assim como também não há descrições de guerras entre estas “divindades”.
7. CONCLUSÃO
À medida que avançamos em nossa análise exegética, podemos estabelecer com segurança uma série de verdades extraídas do texto. Várias conclusões a que chegam os teólogos críticos baseadas em comparações com escritos pagãos antigos são reveladas como falsas.
Atestamos exegeticamente que a posição de que existe dependência literária, de que os supostos “autores” do livro de Gênesis fizeram recortes de vários textos das cosmogonias antigas para compor a narrativa bíblica é uma ideia contrária aos fatos. O texto bíblico é único em seu estilo, gênero literário, autoridade e propósito.
Não há também a menor ideia de uma divinização dos elementos da criação. Em vez disso, há um contraste profundo entre o Criador e os elementos criados. Yahweh Deus é colocado como o soberano criador que está acima do universo. Vimos que a palavra usada no texto (Elohim) reforça esta ideia. Não há também qualquer evidência de uma luta entre “divindades”, em consequencia da qual o universo teria sido criado. No contexto do capítulo 1 de Gênesis, toda a criação está em sujeição ao seu Senhor suserano.
Todas estas questões nos fazem concluir que temos diante de nós um texto único, radicalmente distinto dos demais relatos criacionais do antigo Oriente Próximo. O relato de Gênesis estabelece-se como sendo divinamente inspirado e autoritativo, além de historicamente confiável. Diferente dos outros escritos e até mesmo da ciência, as verdades que podem ser encontradas nunca se chocam com as descobertas que podem ser comprovadas. Tudo isso nos leva a crer que o livro de Gênesis é obra de um único autor (Moisés), que o escreveu sob inspiração divina.
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