A
doutrina reformada da suficiência das Escrituras ensina que a Palavra de Deus é
completa e suficiente. Por esta razão, não há necessidade de acréscimos de
qualquer natureza à Bíblia. Esta doutrina confere à Escritura o
lugar de honra e autoridade que lhe é devido. Não só isto, mas ressalta a
sabedoria e perfeição da revelação divina, uma vez que mostra que Deus revelou
de maneira perfeita e completa a sua vontade. O Senhor não nos deu uma
revelação parcial, incompleta ou fragmentada.
Apesar de a doutrina ser óbvia, já
que, sendo Deus perfeito em seu ser e em suas obras, a revelação jamais poderia
ser incompleta, muitas são as doutrinas e práticas de determinados grupos
pseudo-cristãos que a sacrificam. Pretendo, com este breve estudo, apresentar
alguns destes grupos heréticos. Antes disso, irei mostrar o fundamento
bíblico-teológico-histórico da doutrina.
Desta forma, conhecendo os pilares
desta doutrina escriturística e identificando as tendências modernas que
prejudicam esta visão ortodoxa da Escritura, poderemos perceber quando a Igreja
está, de alguma forma, anulando a suficiência da Palavra de Deus.
OS ALICERCES DA DOUTRINA DA
SUFICIÊNCIA DAS ESCRITURAS
A DOUTRINA NA BÍBLIA
A Bíblia é o nosso fundamento,
portanto precisamos extrair dela o pressuposto que iremos defender. Podemos
considerar o texto de Deuteronômio 4.2, que diz: “Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para
que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando”. O
Senhor Deus estava dando instruções ao povo de Israel quando lhes deu esta
ordem. E esta ordem é clara e específica: nada
deveria ser acrescentado nem diminuído daquilo que ele havia revelado.
Semelhantemente, no mesmo livro citado
encontramos esta orientação: “Tudo o que
eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás” (12.32). Neste
caso o contexto é litúrgico. Estes dois textos são parecidos com o que
encontramos em Apocalipse 22.19-20, que amaldiçoa aqueles que ousarem acrescentar
ou diminuir palavras ao que foi escrito na profecia. Por estes textos podemos
deduzir que a Palavra de Deus é suficiente, completa e perfeita, não precisando
de acréscimo. Não sendo isto verdade, por qual razão haveria tanta proibição
para se adicionar ou subtrair palavras daquilo
que Deus tinha revelado? Isso só se explica com a ideia da suficiência da
Escritura.
Tudo o que Deus revelou é completo,
suficiente. Nada precisa ser adicionado. A Bíblia, tal qual a temos em mãos
hoje, “é inspirada por Deus e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça...”
(2ª Tm 3.16). Estes textos básicos bastam para se provar biblicamente a
doutrina da suficiência da Escritura.
A DOUTRINA NA HISTÓRIA
A doutrina da suficiência da
Escritura está amplamente presente no protestantismo histórico-ortodoxo. Estudando
os escritos dos nossos antepassados a encontramos claramente. É importante
analisar a doutrina historicamente; saber o que nossos irmãos do passado
entenderam sobre certas doutrinas é importante para a nossa compreensão dela.
Brian Schwertley diz que “desde os tempos dos apóstolos até hoje, a igreja tem
crido que a Bíblia é completa, eficiente, suficiente,
inerrante, infalível e autoritativa” [1] (grifo meu).
A 6ª seção do primeiro capítulo da
Confissão de Fé de Westminster reza o seguinte:
“Todo o conselho de Deus concernente
a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida
do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e
claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem
por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos,
entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a
salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas
circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às
nações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza
e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem
ser observadas” [2].
O ensino é claro. Tudo o que precisamos saber
para nossa vida cristã está contido na Escritura. Obviamente nem tudo é
igualmente claro. A confissão ensina que aquilo que não está claro pode ser
estabelecido por dedução. O que se pode afirmar com certeza, com base em seu
ensino, é que não existe nada além da Escritura que tenha peso compulsório
sobre os cristãos.
SINAIS DO ABANDONO DA DOUTRINA DA
SUFICIÊNCIA DA ESCRITURA
Quando a apostasia começa a se
manifestar na Igreja, é impossível não se identificar os sinais. Eles
claramente apontam para o declínio da Escritura na vida desta. Isto tem sido
uma característica do evangelicalismo moderno. Quando as Santas Escrituras não
estão no centro da vida cristã, a Igreja padece, cai em um abismo sem fim.
A “insuficiência” da Escritura é a
tônica da maioria das ditas igrejas cristãs, sejam elas católicas romanas ou
“evangélicas”. As duas principais formas de sacrifício à suficiência da Bíblia
são a tradição e a crença nas novas revelações do Espírito.
A TRADIÇÃO
Esta é a marca da igreja romana.
Para o catolicismo, a tradição tem peso equiparado com as Escrituras, de
maneira que aquilo que é passado ao longo das gerações como ensino verdadeiro,
é igualmente autoritativo para os homens, tanto quanto a Palavra.
Esta forma de enxergar a tradição
invalida a Palavra de Deus, além de torná-la incompleta, pois faz supor que
algo é adicionado ao seu ensino. Teríamos uma revelação parcial da parte de Deus, e não poderíamos dizer que a Bíblia é um
guia completo para a condução da vida cristã.
Os reformadores rejeitaram com
veemência esta concepção. Para eles, as Escrituras são a autoridade máxima, na
verdade única, em matéria de fé. A
Bíblia é a norma norman, à qual todas
das demais normal estão submissas. Elas condenam com muita clareza possíveis
acréscimos ao seu conteúdo, em textos já mencionados (Dt 4.2; 12.32; Ap
22.19-20).
Existe,
ainda, no caso do catolicismo, um agravante: as adições são, em muitos casos,
acompanhadas de heresias. Algumas de suas doutrinas, que são ensinadas apenas
em seus catecismos, encíclicas, bulas papais e outros documentos, não encontram
qualquer amparo nas Escrituras. Doutrinas como a mariolatria, a
transubstanciação, o purgatório, o limbus
patrum e o limbus infantum, a
missa, o papa, o celibato do clero e inúmeras outras estão em total desacordo
com a Bíblia.
É
digno de nota que o problema de uma tradição em pé de igualdade com a Escritura
não é apenas propriedade da igreja papal. Muitos evangélicos, por adotarem um
sistema rígido de vida, o qual não é também ensinado em parte alguma das
Escrituras, caem nesse engano. Eles impõem sobre os seus seguidores uma série
de restrições, e acabam usurpando o lugar da Palavra de Deus no direcionamento
da vida cristã. Eles “atam fardos pesados
e difíceis de carregar e os põem sobre os ombros dos homens” (Mt 23.4).
Nosso Senhor Jesus diz que aqueles que fazem estas coisas invalidam a Palavra
de Deus por causa de suas tradições, e acrescenta que estes adoram a Deus em
vão (Mt 15.6,9).
AS NOVAS REVELAÇÕES DO ESPÍRITO
Esta é a segunda perversão da doutrina da suficiência da Escritura. Por sua natureza “miraculosa”, ela tem alcançado grande popularidade, e diversos grupos outrora considerados conservadores, fechados, têm aderido a este movimento anti-bíblico.
Segundo
se alega nos círculos pentecostais e carismáticos (que defendem estas supostas
revelações), o Espírito Santo continua a conceder dons revelacionais tal qual
nos dias dos profetas da antiga aliança e nos dos apóstolos, na nova aliança.
Estes dons possuem a mesma natureza que aqueles registrados nas Escrituras. De
acordo com esta crença, estes dons devem permanecer na Igreja até a segunda
vinda de Cristo.
Esta
doutrina entra em conflito com a Palavra de Deus. Ela pressupõe a possibilidade
de acréscimos não autorizados ao seu sagrado conteúdo. Uma vez que nós dispomos
de uma cânon bíblico completo e perfeito, não há necessidade de novas
revelações. Supondo uma revelação nos dias de hoje, qual seria o conteúdo desta
revelação? Seria uma doutrina nova? Se o conteúdo desta revelação fosse
contrário à Escritura, obviamente ela não poderia ser aceita. E se ele
estivesse em acordo, não seria uma nova revelação, apenas uma exposição do que
já está revelado – e isto os fieis ministros do evangelho já fazem. Nas
palavras do Rev. Paulo Anglada, tratando da Sola
Scriptura, “Se as novas revelações do Espírito ou as tradições humanas
ensinam o que já é ensinado nas Escrituras, são desnecessárias; se vão além,
devem ser rejeitadas” [3].
Não
é apenas por inferência lógica que é possível refutar esta heresia, as
Escrituras também não a apóiam. No ensino de Paulo, a Igreja está erigida sobre
o fundamento dos apóstolos e profetas, onde Cristo é a pedra principal (Ef
2.20). Não se pode pôr outro fundamento além do que já foi posto – Cristo (2ª
Co 3.11). Todos os textos bíblicos que condenam os acréscimos à Palavra também
são suficientes para se refutar a crença nas novas revelações.
Além
de tudo o que foi dito sobre este movimento, é preciso fazer referência aos
resultados desastrosos a que este ensino tem conduzido. Destas experiências
subjetivas têm surgido toda sorte de ensinos e práticas bizarras. Talvez o
principal indicador disto seja o culto. Vários elementos nocivos a uma liturgia
bíblica são introduzidos sem nenhuma autorização. As igrejas estão cheias de
pessoas vazias. Não se cresce nem na graça nem tão pouco no conhecimento do
Senhor Jesus Cristo. Podemos resumir que tanto as Escrituras quanto as nossas
experiências (aquilo que temos visto diante de nós diariamente) atestam que
esta doutrina, longe de glorificar a Deus, tem causado escândalo ao evangelho.
CONCLUSÃO
Segundo
ensinavam os reformadores, uma das marcas da verdadeira Igreja é a pregação
fiel da Palavra de Deus. Quando não se tem esta compreensão, o resultado é
danoso. A Igreja deixa de ser guiada pelas Escrituras e abre-se o caminho para
o subjetivismo e para as inovações mundanas.
A
Reforma trouxe consigo o entendimento de que a Escritura, e somente a Escritura,
deve nortear todas as áreas da vida do homem. Como já foi argumentado, a Bíblia
é inspirada por Deus (2ª Tm 3.16), por isso ela é completa, perfeita e
suficiente. Nada mais precisa ser acrescido. Deus não deixou faltar nenhum
detalhe, nem foi pego de surpresa pelas circunstâncias para precisar conferir
autoridade à tradição histórica da Igreja ou a supostas revelações do Espírito.
Hoje,
o misticismo, o pragmatismo, o relativismo, o pietismo e o subjetivismo
invadiram a Igreja. Estão assolando e devastando as comunidades cristãs, seus
cultos, sua doutrina, sua vida. Uma das claras razões para esse caos é a
descrença na suficiência da Escritura. Essas pessoas, na verdade, não têm fé
suficiente para ficar com a Escritura somente, elas precisam de algo que a complemente.
Nós, porém, como herdeiros do pensamento reformado que somos, não entendemos
que a Escritura seja insuficiente ou incompleta. Cremos que o Senhor nos deu
exatamente aquilo de que precisamos: a completa revelação de sua soberana
vontade para as nossas vidas.
Precisamos
defender a suficiência da Escritura. Para isto, precisamos mostrar a sua
natureza transformadora na vida das pessoas. Precisamos colocá-la em seu devido
lugar, que é o púlpito. Um grande sinal da negação desta doutrina em nossos dias
é o “sumiço” da Escritura na pregação. Substitui-se o conteúdo bíblico por
mensagens de auto-ajuda, discursos que mais se assemelham a palestras
motivacionais do que a sermões. Recoloquemos a santa Escritura no seu lugar, é
disto que precisamos. Sola Scriptura!
[1]
SCHWERTLEY, Brian. O Movimento
Carismático e as Novas Revelações do Espírito. São Paulo: Os Puritanos,
2000, pág. 47.
[2]
HODGE, Alexander A. Confissão de Fé de
Westminster Comentada. Traduzido por Valter Graciano Martins. São Paulo: Os
Puritanos, 2013, pág. 64.
[3]
ANGLADA, Paulo Roberto Batista. Sola
Scriptura – A Doutrina Reformada das Escrituras. Ananindeua: Knox
Publicações, 2013, pág. 98.
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